
humaitopia
Caroline Valansi
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A artista Maria Haddock é uma colecionadora obstinada de papéis. Junta, garimpa, organiza, ou simplesmente deixa que eles a encontrem. Entre suas pilhas, abriga um cartório inventado, onde ela emite documentos tão criativos quanto imaginários, carimbando seus certificados que não comprovam fatos, mas atestam invenções. Para sua individual, Maria abre suas gavetas e pastas para mostrar o que vem produzindo nos últimos quinze anos, com uma originalidade que desafia qualquer classificação usual.
Mais do que um acervo, sua coleção é um território sem fronteiras: papéis esquecidos e (antes) sem dono, materiais herdados de papelarias extintas, decalques antigos, papéis de carta, recibos de pagamento, envelopes de discos, papéis de presente. Relíquias guardadas dentro do seu ateliê-cartório. Guiada talvez por apego e/ou afeto, registra cada papel como faria uma tabeliã: manuseia, identifica, cataloga e autêntica. Mas, em invéz de limitar-se à função de guardiã, Maria reinventa seus usos e suas poéticas.
Um recibo pode virar certidão com carimbo oficial, papéis de embrulho podem se tornar canudos em envelopes de plástico, um decalque pode nascer como colagem irônica, placas de fichário viram pranchas para ondas de um alfabeto Hokusai. Assim, sua coleção não é um arquivo estático, mas um território vivo onde cada peça ganha a possibilidade de exercer um papel que nunca teve.
É nesse gesto de ressignificar e oficializar à sua maneira que surge a figura da “artista-tabeliã”, ferramenta crítica e performática para pensar a burocracia da vida, seus afetos e os modos de validar o que escapa aos registros oficiais. Não se trata de um alter ego, mas de uma assinatura: um carimbo ficcional e provocativo que legitima documentos que operam entre a fabulação e a denúncia.
Visualmente, seus documentos carregam marcas próprias, como o uso constante do azul, cor que a acompanha há anos e que vem da sua relação com o mar, fonte simbólica de onde a artista extrai também suas “Ondas" de intervenção urbana no bairro do Humaitá, que é a sua morada e também seu campo de ação. É ali que constrói estratégias cotidianas, quase imperceptíveis, mas persistentes: pequenas pinturas de ondas que deslocam e reconfiguram o espaço e suas relações. Com tantas ações realizadas, fundou espontaneamente a “Praça da Onda”, criando uma geografia inventada dentro da cidade, tão viva quanto o pequeno ecossistema que povoa seus papéis.
Parte desses documentos nasce como uma tentativa de burlar lógicas formais e enfrentar intervenções desumanizadas que seu bairro vem sofrendo, propondo outros modos de existir e resistir frente ao avanço da cidade que se afasta da escala humana. Seu trabalho amplia as formas de narrar e intervir no real, criando brechas poéticas e visuais onde ondas e não ressacas imobiliárias possam ser legitimadas.
Suas séries vão sendo produzidas na experiência do fazer, modificando seus materiais com as próprias mãos. Entre os trabalhos apresentados, os chamados “Canudos" ocupam um lugar singular. Nasceram de um gesto mínimo de enrolar cadernos velhos, papéis rejeitados ou blocos de notas em rolos compactos, de presença quase escultórica. Ao transformar folhas soltas e frágeis em cilindros de tamanhos variados, Maria altera não só seu aspecto, mas sua natureza, o bidimensional torna-se tridimensional, o plano em corporeidade. Cada rolo guarda, em sua superfície, pistas do que um dia foram palavras soltas, logomarcas, mensagens improvisadas, notas fiscais. Esse ato, que começou como um exercício quase meditativo, revela seu olhar paciente para o detalhe e nos faz perceber o que passaria despercebido.
No universo do cartório: traças, fungos, manchas e papéis carcomidos não são matérias para jogar fora, mas relações com “espécies companheiras”, numa afetuosa colaboração multiespécie, onde ela reconhece nesses pequenos agentes e nos rastros que deixam, uma forma de inteligência sensível, que interfere e colabora no processo.
Nas séries que levam os carimbos “foxing” e “silverfish” a tabeliã se refere ao efeito raposa e às traças peixinho-de-prata. Tais manchas e caminhos irregulares não aparecem como deterioração, mas como escritas. A artista não combate o desgaste, compartilha espaço com ele. Ela cuida dos papéis, mas também dos bichos, traçando linhas e pontos que transformam a decomposição em constelações e diagramas inesperados.
Com atenção para o que costuma ser descartado ou invisível, acolhe a matéria papel e o modifica, de algo insignificante para uma presença. Nessas pareidolias improvisadas, formas surgem do encontro entre controle e acaso, gerando invenções visuais que expandem a própria noção de autoria.
É deste território, construído na colaboração entre artista, sua coleção e coautores não humanos, que esta exposição se abre: não como vitrine de peças isoladas, mas como acesso ao funcionamento interno de um cartório fictício e, ao mesmo tempo, muito real. Ao torna-lo público, Maria Haddock convida o visitante a assumir o papel de testemunha, ou cúmplice de um arquivo que insiste em validar aquilo que a lógica oficial não saberia reconhecer.
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